Consultora: Marina Campo: Mangia Etapa: Mapeamento inicial e escuta
Este documento relata a experiência subjetiva da cartógrafa Marina ao entrar no campo da Mangia. Conforme a Cartografia Organizacional, o corpo da cartógrafa funciona como um sensor, captando não apenas informações explícitas, mas os afetos, as atmosferas e as tensões invisíveis que compõem a realidade da organização.
A chegada no campo
Ao cruzar o portão do galpão da Mangia, a primeira afetação foi olfativa: um cheiro intenso e maravilhoso de manjericão fresco misturado com o aroma acre de papelão úmido. Imediatamente, meu corpo registrou uma dissonância sensorial: o perfume sugeria natureza e calma, mas a acústica era de caos — gritos de comando, barulho de fita adesiva sendo rasgada com violência e o som constante de empilhadeiras.
Senti uma aceleração cardíaca que não era minha, mas do ambiente. A “frequência” da Mangia é de urgência. Não há caminhada lenta no galpão; todos correm. Tive que me segurar para não acelerar meu passo e entrar na mesma vibração de pânico produtivo.
Afetações nas entrevistas
Durante as conversas individuais, meu papel não foi de observadora neutra, mas de alguém que se deixa atravessar pelos afetos do outro. Abaixo, registro o que senti na presença de cada atuante.
Lorenzo: o furacão na sala de vidro
- Sensação física: Exaustão e encantamento.
- Afetação: Estar com Lorenzo é como estar perto de uma fornalha. Ele emana uma energia vital fortíssima, sedutora, que me fez querer acreditar no sonho dele imediatamente. No entanto, senti também uma pressão no peito, uma sensação de falta de ar. Ele ocupa todo o espaço. Quando ele falava da equipe, senti uma pontada de agressividade disfarçada de cuidado (“pai severo”). Saí da sala me sentindo pequena, com a nítida impressão de que ele queria que eu validasse a genialidade dele, não que eu resolvesse os problemas.
- Leitura cartográfica: Ele é o núcleo da Câmara Magmática. Sua paixão aquece, mas também queima quem chega muito perto.
Helena: o peso do mundo
- Sensação Física: Peso nos ombros e tensão na mandíbula.
- Afetação: Helena me transmitiu uma sensação profunda de solidão. Enquanto ela falava, senti uma vontade física de ajudá-la a carregar as caixas imaginárias que ela descrevia. A exaustão dela é “pegajosa”; é um cansaço de quem luta uma guerra perdida todos os dias. Percebi que eu estava espelhando a respiração curta dela. Ela é a represa tentando segurar a enxurrada do Lorenzo.
- Leitura cartográfica: Ela está tentando construir um Maciço Cristalino (ordem, processos) no meio de um vulcão ativo.
Breno: o escudo de dados
- Sensação física: Frio e distanciamento.
- Afetação: A conversa com Breno baixou a temperatura do meu corpo. Senti uma barreira invisível, quase metálica. Ele usava o monitor como um escudo. Senti uma ponta de arrogância defensiva — ele me olhava como se eu fosse mais uma pessoa de “humanas” que veio atrapalhar. Mas, por trás do cinismo, captei uma frustração genuína de quem quer ver a lógica triunfar sobre o caos. Senti vontade de provar para ele que eu era útil.
- Leitura cartográfica: Ele habita um Arquipélago Estruturado mental, ilhado em sua lógica de eficiência, desconectado do corpo pulsante da fábrica.
Dona Cida: o abrigo clandestino
- Sensação física: Calor no estômago (conforto) e dor nas costas.
- Afetação: Dona Cida foi o único momento de “pouso”. Senti acolhimento, como se estivesse na cozinha da minha avó. Mas, ao mesmo tempo, senti uma tristeza profunda e silenciosa. O olhar dela carrega o peso de segredos (os choros que ela consola, as abobrinhas que ela joga fora). Senti uma dor física na lombar enquanto ela descrevia o trabalho, uma empatia somática pelo desgaste dos corpos operacionais.
- Leitura cartográfica: Ela opera nas fendas, criando pequenas zonas de sobrevivência humana dentro da máquina.
Lucca: a ansiedade vibrante
- Sensação física: Agitação nas pernas (vontade de sair correndo) e nó na garganta.
- Afetação: Lucca me passou uma sensação de desperdício. Senti uma energia criativa represada que está virando azedume. A ansiedade dele é contagiante; ele fala rápido, atropela as palavras. Senti medo por ele — medo de que ele desista ou exploda. A dissonância entre o que ele escreve (paz) e o que ele vive (guerra) me causou uma vertigem ética.
- Leitura cartográfica: Ele é uma Linha de Fuga tentando acontecer, mas sendo constantemente recapturada e bloqueada pela estrutura.
O peso ético e a não-neutralidade
Ao final desta rodada, tornei-me guardiã de segredos perigosos:
- Sei que Dona Cida joga comida fora sem registrar.
- Sei que Lucca roubou estoque para doação.
- Sei que Helena desautorizou o CEO para liberar o caminhão.
Essas Micronarrativas de Fissura são a prova de que a organização só funciona apesar das regras oficiais, e não por causa delas. Sinto o peso da responsabilidade: se eu revelar esses segredos num relatório frio, posso causar demissões. Se eu os esconder, posso perpetuar a disfunção.
Minha intervenção já começou. Ao escutar Lucca, validei a indignação dele. Ao ouvir Cida, tornei o sofrimento dela visível. O campo já mudou porque eu entrei nele. Agora, preciso desenhar mapas que protejam essas vidas enquanto transformam a geologia que as oprime.
Leitura sensorial preliminar
A Mangia não é uma empresa em transição para a autogestão; é uma guerra civil geológica. Existe um choque violento entre uma Câmara Magmática (a cultura do fundador, baseada em afeto e explosão) e tentativas desesperadas de criar Maciços Cristalinos (Breno e Helena tentando impor ordem).
O “amor” que Lorenzo prega está se transformando em Potestas (dominação) porque exige submissão ao seu humor. A Potência (Potentia) real está escondida nas gambiarras, nos consertos de sábado à noite e no acolhimento dentro da câmara fria — justamente as coisas que a gestão oficial ignora ou pune.
Meu desafio: Transformar a “paixão” destrutiva do Lorenzo em confiança distribuída, permitindo que a inteligência de Breno, a organização de Helena, a sabedoria de Cida e a criatividade de Lucca formem um agenciamento de composição, e não de decomposição mútua.