Data: Quinta-feira, 14:00 (Um dia após o caos do mutirão, enquanto a memória corporal ainda estava fresca). Local: O próprio galpão da Mangia (afastamos as mesas de montagem para criar uma clareira no local do crime). Facilitação: Marina (Cartógrafa).
O clima pré-oficina e a ansiedade de Lorenzo
Cerca de trinta minutos antes do início, Lorenzo interceptou Marina no corredor. Ele estava visivelmente agitado, segurando um café pela metade, e começou a bombardear a consultora com perguntas: “Marina, você falou com todo mundo. O que eles disseram? O Breno reclamou de mim? A Helena disse que quer sair?“. A ansiedade dele era palpável; ele buscava nomes, culpados ou validação, temendo que a reunião se tornasse um motim.
Marina precisou exercer a ética cartográfica ali mesmo, segurando a confidencialidade das escutas e reorientando a tensão. “Lorenzo, se eu te contar o que um ou outro disse, a gente transforma isso em fofoca e nada muda. O que eles sentem não é sobre você, é sobre como a energia circula ou trava na quarta-feira. O mapa que vamos construir agora vai mostrar isso visualmente. Confia no processo”, explicou ela. Ele entrou na roda desconfiado, sentando-se inicialmente de braços cruzados, na posição de quem espera um ataque.
Participantes e convites
Para que o mapa representasse o agenciamento real e não apenas a visão da diretoria, a lista de convidados seguiu rigorosamente o critério da diversidade de perspectiva. Marina solicitou a presença dos cinco personagens centrais e mais cinco pessoas que operam nas bordas da organização.
O grupo final de dez pessoas incluiu Lorenzo, Helena, Breno, Dona Cida e Lucca, somados a Jéssica (a estagiária que chorou na câmara fria), Sr. Milton (motorista da transportadora que vive o gargalo da saída), Ana (assistente administrativa), Pedro (desenvolvedor júnior) e Clara (nutricionista). A estratégia do convite foi importante: não foram chamados para discutir problemas, mas para ajudar a desenhar como se trabalha na quarta-feira. Isso reduziu drasticamente a defesa de quem ocupa cargos menores.
A ferramenta escolhida: mapa de fontes e drenos
Marina optou pelo Mapa de Fontes e Drenos aplicado sobre uma linha do tempo. A escolha se deu pela visceralidade da ferramenta, já que o grupo estava exausto intelectualmente e conceitos abstratos poderiam alienar participantes como Dona Cida ou o Sr. Milton. Além disso, o foco no afeto — perguntando onde se ganha ou perde energia — evita a busca por culpados diretos. A ferramenta também é excelente para visualizar gargalos, pois o acúmulo físico de post-its em um único ponto torna o problema inegável e sistêmico.
O planejado versus o acontecido
A ideia original era montar uma linha do tempo das 06:00 às 20:00 da quarta-feira e pedir que colassem post-its verdes para momentos de potência e alegria, e vermelhos para momentos de dreno e cansaço. Marina esperava uma adesão tímida no início e estava preparada para fazer perguntas provocadoras.
No início da dinâmica, o silêncio imperou. Apenas Helena e Lucca colavam post-its, enquanto a equipe operacional olhava para Lorenzo à espera de permissão. Lorenzo, tentando dar o tom, colou um post-it verde bem no meio do dia com a frase “Mutirão: União do time”. Houve um silêncio constrangedor e Breno revirou os olhos discretamente.
A represa se rompeu quando Marina interveio diretamente com o Sr. Milton, perguntando qual a cor do sentimento quando ele chega e a carga não está pronta. Ele riu nervoso e pegou o bloco vermelho: “Vermelho escuro, dona. Medo de perder a rota”. Isso autorizou o grupo. Dona Cida levantou-se devagar e colou um vermelho na etapa de triagem: “Dor no coração de ver legume feio sendo embalado”. Foi o gatilho necessário para que Breno e Pedro levantassem e cobrissem a faixa do horário do mutirão com post-its vermelhos, citando “código atrasado” e “sensação de inutilidade”.
Ao final, o mapa causou um choque visual. Havia verde no início, durante o café, e no fim, no happy hour. Mas o meio do dia era um mar de sangue. Havia um aglomerado massivo de vermelhos sobre um post-it específico que dizia “Aprovação final do Lorenzo”. Os papéis ao redor citavam fila de espera, gritos, mudança de regra de última hora e retrabalho. Lorenzo olhou para aquilo e viu seu post-it verde de união cercado por trinta vermelhos. Ele empalideceu. O mapa gritou o que ninguém tinha coragem de dizer.
A emergência dos segredos e as resistências
Diante do mapa sangrento, Marina perguntou como, apesar de tudo, as caixas saíram. Foi nesse momento de vulnerabilidade coletiva que alguns segredos emergiram, mas não sem custo.
Dona Cida foi a primeira a confessar. Ela olhou para Lorenzo e admitiu: “Olha, seu Lorenzo… quando o senhor mandou colocar as abobrinhas passadas, eu não botei não. Joguei grande parte fora escondido. Desculpa o prejuízo, mas não tinha condição”. Lorenzo abriu a boca para reclamar do custo e seu rosto ficou vermelho, mas Jéssica interveio rapidamente: “Ainda bem, Dona Cida. Se aquela abobrinha vai, o SAC teria explodido hoje”. O grupo murmurou em concordância, validando a desobediência de Cida. Lorenzo engoliu em seco, aceitando a derrota moral, mas visivelmente incomodado com a perda de autoridade.
Em seguida, Breno apontou para o dreno da falta de rúcula e explicou com frieza: “O sistema previu isso. O vermelho aqui é porque ignoraram os indicadores”. Lorenzo não aceitou bem. Ele cruzou os braços e retrucou com ironia: “Tá bom, Breno. Na próxima a gente segue seu robô. Mas se faltar rúcula na mesa do cliente, a assinatura é sua, não minha. Quero ver se o algoritmo sabe pedir desculpa”. O clima pesou. Helena tentou amenizar: “Se a gente seguir o número do Breno, pelo menos eu durmo na terça à noite”.
Lucca, ainda trêmulo, trouxe o momento de maior emoção. Admitiu: “As sobras… eu não joguei fora. Levei para um abrigo. Eles mandaram uma carta de agradecimento”. Ele entregou a carta. Lorenzo leu e seus olhos encheram d’água genuinamente. A dimensão do amor que ele buscava estava ali. Ele abraçou Lucca, um momento de alívio na tensão da sala.
Marina então olhou para Helena. Ela sabia, pelas entrevistas, do segredo do caminhão liberado sem ordem. Helena abriu a boca, olhou para o rosto ainda defensivo de Lorenzo após o embate com Breno, e travou. Ela percebeu que Lorenzo podia aceitar a caridade de Lucca, mas não aceitaria saber que a logística funciona melhor sem ele. “Eu… não, acho que o principal já foi dito”, disse Helena, recuando. O segredo mais estrutural da operação permaneceu na sombra.
Resultados, acordos e a ponta solta
A oficina terminou com avanços importantes, mas com uma atmosfera de trégua armada, não de paz total.
Primeiro, estabeleceu-se o veto da Cida com o crachá de xerife da qualidade. Segundo, instituiu-se o oráculo de silício como teste para a próxima semana, sob a condição de “prova de fogo” imposta por Lorenzo. Por último, a equipe técnica foi dispensada do mutirão.
Enquanto o grupo se dispersava, Helena puxou Marina para um canto, longe dos ouvidos do CEO. “Eu não tive coragem de contar do caminhão”, sussurrou ela. “Ele ficou muito sentido com o Breno. Se eu dissesse que libero a carga sem o ok dele, ele ia sentir que é inútil aqui dentro. Esse B.O. continua meu. A gente ganhou a batalha da abobrinha, Marina, mas a guerra do controle eu ainda não sei como vencer”.
Lorenzo saiu da oficina segurando a carta do abrigo com uma mão, mas digitando freneticamente no celular com a outra, já microgerenciando algum novo detalhe para compensar a perda de terreno. A cartografia revelou as potências, mas o Potestas (poder de dominação) continuava à espreita, esperando o primeiro erro do algoritmo para dizer “eu avisei”.