Este documento registra o conteúdo das entrevistas individuais realizadas com os principais Atuantes da Mangia durante as primeiras semanas da consultoria. O objetivo foi capturar não apenas a “versão oficial” dos fatos, mas os afetos e as Micronarrativas que revelam a geologia (Arquétipos Geológicos) real da organização.

1. Lorenzo (Fundador e CEO)

Cenário da entrevista: A conversa aconteceu na sala de vidro de Lorenzo, que tem vista para o galpão. Durante a entrevista, ele se levantou três vezes para observar o movimento lá embaixo.

Resumo da conversa: Lorenzo iniciou a entrevista gesticulando muito, visivelmente apaixonado. Ele puxou o celular para mostrar fotos de uma visita recente a um produtor de tomates orgânicos em Ibiúna, narrando com emoção como o cheiro da terra molhada é a essência da Mangia. Ele enfatizou que a indústria alimentícia “matou a alma” da comida e que ele se vê como um guardião da qualidade, uma barreira contra a mediocridade.

Quando o assunto mudou para a gestão da equipe, sua expressão fechou. Ele relatou com amargura o “Episódio do Manjericão”, ocorrido há dois meses: numa quarta-feira em que ele precisou se ausentar para uma reunião externa, a equipe enviou centenas de caixas com manjericão que, segundo ele, estava “triste e murcho”. Ao descobrir isso pelas redes sociais no dia seguinte, sentiu-se traído. “Eu dou autonomia, e eles me dão desleixo”, desabafou. Para ele, esse evento provou que a autogestão é um risco; se ele não estiver lá para tocar na folha e aprovar, o padrão cai.

Ele também comentou sobre a tentativa de implementar a Holacracia. Apontou para um quadro na parede onde círculos de papel coloridos (representando papéis e responsabilidades) estavam começando a descolar nos cantos. Contou que, na teoria, todos adoraram a ideia de não ter chefes, mas na prática, quando um fornecedor de embalagens atrasou a entrega na semana passada, ninguém assumiu o problema e a “batata quente” caiu no colo dele às 18h da véspera da entrega. Ele encerrou a conversa lembrando com orgulho do dia em que expulsou um investidor de Venture Capital de sua sala, após o sujeito sugerir trocar as caixas de papelão biodegradável por plástico para aumentar a margem. “Nesse dia eu soube que só eu sei o que é valor aqui dentro”, concluiu, batendo na mesa.

Micronarrativas identificadas:

  • “O dia do Manjericão Murcho”: Lorenzo repete essa história para justificar por que precisa verificar cada caixa pessoalmente. “Se eu não olho, o lixo vai para a mesa do cliente”.
  • “A Holacracia de Papel”: “A gente colou os círculos na parede, fez as reuniões de governança, mas na hora que o bicho pega na quarta-feira, ninguém lembra do círculo, todo mundo olha pra mim”.
  • “O cheque do investidor recusado”: Conta com orgulho que recusou dinheiro de um fundo porque “eles queriam cortar o custo da embalagem”. Usa isso para reforçar que só ele sabe o que é valor.

2. Helena (Liderança de Operações)

Cenário da entrevista: A entrevista foi feita em uma mesa de café fora da empresa, a pedido dela, para evitar interrupções constantes. Ela parecia visivelmente cansada e verificava o relógio com frequência.

Resumo da conversa: Helena suspirou fundo antes de começar, definindo a Mangia como um “hospício com um propósito lindo”. Ela descreveu sua rotina como uma constante reconstrução do que foi planejado. Citou um exemplo específico da semana anterior: ela havia fechado a compra de berinjelas na segunda-feira com um produtor parceiro, com entrega agendada e logística de recebimento pronta. Na quarta-feira de manhã, Lorenzo chegou com o porta-malas do carro cheio de berinjelas “mais bonitas” que comprou numa feira no caminho, mandando cancelar o pedido original. “Ele achou que estava salvando o dia com qualidade, mas eu tive que passar duas horas no telefone me desculpando com o fornecedor parceiro e reajustando toda a linha de montagem porque as berinjelas dele não cabiam na embalagem padrão”, relatou.

O ponto crítico para ela é a logística de saída. Helena contou detalhadamente o incidente do “Caminhão Parado”. Numa quinta-feira chuvosa, o motorista da transportadora estava buzinando, ameaçando ir embora e deixar a carga para trás porque tinha outra rota. Lorenzo estava na linha de montagem, insistindo em reabrir caixas aleatórias para verificar se o azeite estava bem posicionado. Helena tomou a decisão executiva de fechar o portão do caminhão e autorizar a partida sem o “aval final” do CEO. “O cliente recebeu a caixa, ninguém reclamou do azeite, o mundo não acabou. Mas o Lorenzo ficou dois dias sem falar comigo, como se eu tivesse cometido um crime contra a culinária”, disse ela. Ela sente que suas planilhas de custo e eficiência são tratadas como inimigas da “paixão”, e que seu papel de liderança é constantemente desautorizado na frente da equipe operacional.

Micronarrativas identificadas:

  • “A quarta-feira infinita”: “Toda quarta eu chego às 6h e saio às 22h. Minha equipe já sabe: quarta é dia de sofrer. A gente chama de ‘O moedor de carne’“.
  • “O caminhão parado”: Relata uma vez que mandou o caminhão sair mesmo sem a aprovação final do Lorenzo numa caixa específica. “O cliente recebeu, ninguém reclamou, e o mundo não acabou. Mas o Lorenzo ficou sem falar comigo por dois dias”.
  • “A planilha ignorada”: “Eu mostro o custo da hora extra do mutirão, mas o Lorenzo diz que ‘o time precisa vestir a camisa’. A planilha não vence a narrativa da paixão”.

3. Breno (Liderança de Tecnologia e Growth)

Cenário da entrevista: Por videochamada, mesmo ele estando no prédio (ele preferiu não sair da sua mesa, onde tem dois monitores verticais com código rodando).

Resumo da conversa: Breno foi direto, analítico e demonstrava impaciência com o que chamou de “amadorismo romântico”. Ele abriu um dashboard na tela compartilhada para ilustrar seu ponto. Contou a história do “Algoritmo da Rúcula”: ele desenvolveu um modelo preditivo que cruzava dados históricos de consumo com a previsão do tempo e sazonalidade, indicando exatamente quantos maços de rúcula comprar. O modelo sugeriu 200 maços. Lorenzo olhou para o número, riu e disse “Breno, tá sol, o pessoal vai querer salada, compra 300”. Resultado: sobraram 90 maços que foram para o lixo. “Meu código previu com 95% de acerto, mas a decisão foi baseada no ‘feeling’ do dono. É frustrante ver dados serem ignorados por ego”, afirmou.

Sobre o mutirão de quarta-feira, Breno descreveu a experiência como “humilhante e irracional”. Relatou que, na última quarta, enquanto colocava cenouras em sacos plásticos sob os gritos de incentivo de Lorenzo, sua mente estava tentando resolver um bug crítico no gateway de pagamento que estava impedindo novas assinaturas. “A cada minuto que eu passava embalando cenoura, a empresa perdia dinheiro no site. Mas se eu saísse para consertar o bug, seria visto como ‘elitista’ que não quer sujar a mão. Eu consertei o erro no sábado à noite, de casa, sozinho, e na segunda-feira ninguém nem sabia que tínhamos quase perdido o faturamento da semana”. Ele vê a autogestão atual como uma desculpa para a falta de processos profissionais e considera sair da empresa se a cultura não virar para “data-driven”.

Micronarrativas identificadas:

  • “O algoritmo do desperdício”: “Criei um script que prevê a demanda de rúcula com 95% de precisão. O Lorenzo ignorou e comprou 30% a mais ‘pelo feeling’. Sobrou tudo. Meu código funciona, a gestão não”.
  • “Mãos de dev não são para caixas”: “Quarta-feira eu perco meu dia. Fico lá ouvindo grito, volto sujo e com zero vontade de codar. É um ritual de humilhação, não de união”.
  • “A gambiarra do checkout”: Conta como resolveu um bug crítico no sábado à noite sozinho, salvando as vendas da semana, mas ninguém celebrou porque “não foi um esforço físico visível”.

4. Dona Cida (Operacional - Triagem)

Cenário da entrevista: No refeitório, enquanto ela tomava um café rápido antes de voltar para a área refrigerada. Ela falava baixo, como se não quisesse ser ouvida.

Resumo da conversa: Dona Cida tem um olhar maternal sobre a equipe, mas seus relatos revelam um ambiente de tensão emocional constante. Ela contou sobre a “Jéssica”, uma estagiária nova que, durante o último mutirão, foi repreendida publicamente por Lorenzo por ter cortado a vagem “muito grossa”. Cida encontrou a menina chorando escondida dentro da câmara fria de laticínios. “Eu tive que entrar lá, dar um copo d’água e dizer: ‘Minha filha, engole o choro, é só quarta-feira, amanhã ele esquece’. A gente virou enfermeira de alma aqui dentro”, lamentou.

Ela também confessou um pequeno ato de rebeldia silenciosa para proteger a operação. Contou sobre o dia das abobrinhas: o sistema de compras (e o próprio Lorenzo) aprovou um lote de legumes que estava visualmente bonito, mas que ela, com seus anos de cozinha, sabia que estava “passado” por dentro, com cheiro levemente azedo no talo. Lorenzo mandou embalar para não ter prejuízo. Dona Cida, discretamente, foi jogando as abobrinhas suspeitas no fundo da lixeira, cobrindo com cascas para ele não ver. “Eu salvei a gente de intoxicar cliente naquele dia. No relatório apareceu como ‘quebra inexplicável’, mas eu prefiro levar bronca por desperdício do que servir comida ruim. O Lorenzo tem coração de ouro, mas na pressa, ele atropela a própria qualidade que diz defender”. Ela sente saudade do início, quando eram apenas cinco pessoas comendo pizza no final do dia, e diz que hoje a alegria foi substituída pela correria.

Micronarrativas identificadas:

  • “O choro no frigorífico”: “Tem uma menina nova que se esconde na câmara fria pra chorar quando o Lorenzo grita. Eu vou lá, dou um copo d’água e digo: ‘Passa, filha, é só quarta-feira’“.
  • “A abobrinha perfeita”: “O sistema disse que a abobrinha tava boa, o Lorenzo mandou embalar, mas eu senti o cheiro de azedo no talo. Joguei fora escondido. Salvei a gente de uma intoxicação, mas no papel eu gerei ‘quebra de estoque’“.
  • “O mutirão de antigamente” : “No começo, éramos cinco. A gente fazia as caixas rindo, comendo pizza. Agora somos quarenta batendo cabeça. A alegria sumiu, só ficou a pressa”.

5. Lucca (CX e Conteúdo)

Cenário da entrevista: Numa mesa compartilhada no meio do escritório, entre pilhas de caixas de teste e o computador. Ele parecia ansioso, alternando abas entre o editor de texto do blog e o sistema de tickets de suporte.

Resumo da conversa: Lucca descreveu viver uma “dissonância cognitiva” diária. Ele mostrou a tela do computador: numa aba, estava escrevendo um post poético sobre “Slow Food e a importância de desacelerar à mesa”; na outra, respondia tickets de clientes furiosos com atrasos. Ele citou o caso recorrente da “Sra. Marta e o Alecrim”. A cliente reclama toda semana que vem alecrim demais na caixa, um desperdício. Lucca anota, reporta para Helena, que avisa Lorenzo. Mas na quarta-feira seguinte, Lorenzo olha a caixa, acha que está “pouco verde” e manda colocar mais um ramo de alecrim “para ficar bonito”. A Sra. Marta reclama de novo. “Eu me sinto um idiota pedindo desculpas pela quinta vez pelo mesmo erro que a gente escolhe cometer”, desabafou.

Ele também compartilhou uma iniciativa clandestina que tentou realizar. Lucca percebeu que sobravam ingredientes bons que não formavam kits completos e acabavam no lixo. Numa quarta-feira, sem pedir permissão, ele montou “Caixas Solidárias” com essas sobras e levou para um abrigo no caminho de casa. Ficou orgulhoso e tirou fotos, pensando em propor isso como um projeto social da marca. Mas quando pensou em mostrar para Lorenzo, ouviu um grito sobre custo de embalagem no galpão e desistiu. “Eu tenho a solução para o desperdício e para o marketing social, mas tenho medo de apresentar e tomar bronca por ter usado a embalagem oficial sem autorização. Então as fotos estão paradas no meu celular e a comida continua indo pro lixo”, contou, visivelmente frustrado.

Micronarrativas identificadas:

  • “O cliente fantasma”: “Eu atendo a Sra. Marta toda quinta. Ela reclama que veio alecrim demais. Eu anoto, passo pra Helena, que passa pro Lorenzo. Na outra quarta, o Lorenzo manda botar mais alecrim porque ‘tá bonito’. Eu já nem anoto mais, só peço desculpa”.
  • “O post da mentira”: “Escrevi um post sobre ‘Slow Food’ e ‘tempo de qualidade’, e publiquei ele enquanto comia um sanduíche frio em 5 minutos pra voltar pro mutirão. Me senti uma fraude”.
  • “A caixa secreta”: “Uma vez montei uma caixa teste com sobras para doar pra um abrigo, sem pedir permissão. Ficou linda. Queria transformar isso em produto social, mas tenho medo de sugerir e tomar bronca por usar o estoque”.