Um agenciamento é uma composição de elementos heterogêneos, materiais (concretos) e expressivos (simbólicos, linguísticos). Propomos o uso do agenciamento como uma alternativa tática ao conceito de sistema, frequentemente empregado em análises organizacionais.
Embora o pensamento sistêmico seja vasto e possua vertentes que compreendem a realidade como construção social (como o Soft Systems Thinking), o uso corriqueiro da palavra “sistema” tende a evocar uma totalidade fechada, funcional e hierárquica. Optamos pelo conceito de agenciamento para evitar duas armadilhas comuns:
- Interioridade vs. exterioridade: Um sistema é frequentemente definido por suas relações de interioridade — ele busca manter sua coesão interna e equilíbrio (homeostase) protegendo seus limites. Já o agenciamento é definido por suas relações de exterioridade. Ele não é uma bolha isolada, mas um arranjo aberto cujas peças podem ser desconectadas e reconectadas a outros agenciamentos. O foco não é o que o agenciamento “é” por dentro, mas com o que ele se conecta fora dele.
- Transcendência (reificação): Na visão sistêmica tradicional, existe o risco de reificar conceitos abstratos — tratar “A Cultura”, “O Mercado” ou “A Sociedade” como se fossem entidades monolíticas que agem sobre as pessoas. O agenciamento nos lembra que essas “entidades” são apenas agregados. Não existe um plano superior governando as partes. Como diz a filosofia deleuziana, o todo não é maior que a soma das partes; o todo é apenas mais uma parte ao lado das outras, produzida pelas conexões entre elas.
Essa escolha se justifica porque as organizações reais não são organismos biológicos perfeitos; são colchas de retalhos (agregados heterogêneos) formadas por pessoas, softwares, leis, arquitetura e afetos. Precisamos de um mapa que capte esse movimento e a abertura para o “fora”, em vez de uma estrutura estática.
Um agenciamento pode ser mapeado a partir de um conjunto de Atuantes e os Enlaces que os conectam. Além disso, o agenciamento e os seus componentes possuem diferentes graus de Territorialização e Codificação.
A dimensão material de um agenciamento envolve a física dos corpos, a arquitetura, o software, o dinheiro e a infraestrutura. Já a dimensão expressiva envolve os discursos, ordens, acordos, leis, narrativas.
Escalas do agenciamento
O mesmo modelo de agenciamento pode ser aplicado em múltiplas “escalas”: uma reunião específica, um time, uma organização inteira ou até um ecossistema de organizações. Não há hierarquia ontológica entre elas. Em uma perspectiva deleuziana de pensamento de superfície, trabalhamos com uma única e plana “mecanosfera” onde todos esses recortes coexistem e se atravessam.
Ao escolher o recorte, A cartógrafa apenas decide onde pousar o olhar naquele momento, sem supor que a “organização inteira” seja mais real do que um time ou um projeto. Cada recorte revela combinações diferentes de Atuantes e Enlaces, e é justamente a passagem entre eles que permite compreender a geologia do terreno.
Como escolher o que mapear
A cartógrafa pode mapear qualquer problemática que tenha originado o desejo de convite para realizar a consultoria. O recorte do agenciamento não é dado de antemão: ele emerge do encontro entre o pedido inicial e os afetos que aparecem no campo (Fontes e Drenos de Potência).
Em geral, é mais fecundo escolher um agenciamento que:
- Esteja associado a afetos intensos (entusiasmo, exaustão, conflito recorrente);
- Envolva múltiplos Atuantes materiais e expressivos relevantes;
- Seja concreto o suficiente para permitir intervenções, mas amplo o bastante para revelar a geologia do terreno.
Alguns exemplos de recortes possíveis:
- Agenciamento “Fila de demandas do Jurídico”: Quando o convite nasce de uma sensação de sobrecarga e injustiça na distribuição de trabalho. Aqui o agenciamento pode incluir: ferramenta de fila, sócios, diretoria, equipe jurídica, canais paralelos (WhatsApp/Slack), regras de SLA, costumes como a carteirada.
- Agenciamento “Onboarding de pessoas recém-chegadas”: Quando a dor está na dificuldade de integrar novas pessoas. Entram como atuantes: documentos de boas-vindas, pares responsáveis, lideranças, plataformas de treinamento, narrativas sobre “como as coisas funcionam aqui” e espaços (ou ausência deles) para experimentação.
- Agenciamento “Reunião semanal de liderança”: Quando a reunião é vivida como dreno de potência. Atuantes incluem: pauta, calendário, ferramentas de videoconferência, indicadores apresentados, posições hierárquicas, expectativas implícitas e decisões que (não) se atualizam depois do encontro.
- Agenciamento “Operação diária da loja física”: Quando o foco está na experiência do cliente em um ponto específico do ecossistema. Nesse caso, o mapa pode incluir a arquitetura do espaço, o fluxo de caixa, os scripts de atendimento, tecnologias de pagamento, metas de venda, clientes recorrentes e regras de exposição de produtos.
Em todos os casos, o critério é a capacidade de tornar visíveis os Enlaces que produzem ou drenam potência. Se, no processo de mapeamento, surgirem afetos mais intensos em outra parte do terreno, a cartógrafa pode ajustar o recorte e redefinir o agenciamento em questão.